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A impiedosa lição do Sars-Cov-2

2020
pedrosampaiominassa@gmail.com
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (Brasil)

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A impiedosa lição do Sars-Cov-2

Desde o início da pandemia que pôs o mundo em casa (ou a parte consciente dele), tenho ouvido repetidamente algumas pessoas, comentaristas e até veículos de informação dizerem que o coronavírus é um vírus democrático, por atingir a todos os seres humanos independentemente de suas peculiaridades e circunstâncias (classe social, naturalidade, gênero e etnia). Devo dizer, porém, nestas alturas da pandemia, que não, o coronavírus não é um vírus democrático. Primeiro, porque além de não ser um vírus que atinge a todos indistintamente, vem também se mostrando um aliado no acirramento da política autoritária ao redor do mundo.

Bastaria-nos a volta em alguns meios de comunicação internacionais para constatar que o SARS-Cov-2 possui destinatários preferenciais, não porque é biologicamente orientado a fazê-lo, mas porque como qualquer outro vírus tende a se ocupar e expandir sobre os corpos docilizados e frágeis do nosso sistema de desigualdade global, como preconizava Michel Foucault. A disparidade com que o coronavírus atinge determinados países, pessoas e grupos é brutal. Nos Estados Unidos[1], reporta-se que é na população negra em que se registram taxas desproporcionalmente altas de infecção e mortalidade. No Brasil, as comunidades indígenas[2] se veem sozinhas na luta contra o vírus, desassistidas e pressionadas pelas recorrentes invasões. Os índices de contágio e morte podem ser avassaladores. No mundo, o vírus desnuda outra realidade: embora registre maior letalidade entre homens, o vírus atinge em cheio as mulheres, seja porque são 70% dos profissionais de saúde, seja porque há considerável aumento da violência doméstica desde o início do surto.

Se é verdade que a doença é capaz de chegar a todos, ricos e pobres, mulheres e homens, ocidentais e orientais, também o é que ela não atinge a todos na mesma proporção e intensidade. A Covid-19 veio escancarar a putrefata face da desigualdade social que o capitalismo insiste em ignorar. Não porque o vírus assim o queira, senão porque ele desafia a capacidade dos sistemas de saúde e, sobretudo, as formas de acesso a ele. Países com parcas políticas públicas voltadas à distribuição de renda, ao acesso universal a um sistema de saúde público e com institucionalidade frágil têm, muito provavelmente, lidado com dificuldades no enfrentamento ao vírus e todos os seus efeitos devastadores.

A crise sanitária fica mais agravada em locais em que crises de natureza outra também se apresentam (econômicas, políticas, institucionais ou mesmo sanitárias, ocasionadas por outros agentes infecciosos). Entretanto, verifica-se que ainda mais alarmante é a utilização arbitrária, por alguns regimes pouco afetos às liberdades democráticas, de declarações de emergência ou calamidade pública, as quais sustentam decisões excepcionais restritivas a nível de direitos fundamentais (a começar pela liberdade de locomoção), para uma escalada do arbítrio autoritário. Disso resulta, por exemplo, na medida que prolonga o estado de alarme indefinidamente na Hungria, que autorizou o Executivo, liderado pelo ultradireitista Viktor Orbán[3], a seguir governando extraordinariamente por decretos. No mesmo sentido, perde força noutras regiões do globo o apelo à resposta científica, naturalmente construída pela incerteza, como forma de superar a pandemia. Nos EUA[4], Donald Trump, defensor do uso irrestrito da hidroxicloroquina, sugeriu o uso de desinfetante pela população como forma de driblar os sintomas da doença, resultando em dezenas de casos de intoxicação. No Reino Unido[5], o chanceler Boris Jonhson, passou a dar especial atenção à doença quando se viu acometido por ela, tendo de ser internado num hospital público de Londres. No Brasil[6], Jair Bolsonaro, árduo defensor de Trump e da hidroxicloroquina, contrariando especialistas, seu próprio (ex-)Ministro da Saúde e a OMS, saiu às ruas mais de uma vez, rompendo o isolamento social e causando aglomerações, algumas delas por ele convocadas.

Não, não há um vírus chinês. Não, não há um vírus comunista. Contudo, também não há um vírus democrático, senão um vírus que se aproveita, e muito bem, das falhas capitalistas e se embrenha nos regimes populistas. Impiedoso com a humanidade, o coronavírus traz-nos à consciência regressa do reino ao qual pertencemos: animália. Impiedoso com as nossas mazelas sociais, o vírus ocupa o corpo dos aparentemente dispensáveis ao capitalismo. Impiedoso com a saúde e a economia, o vírus insiste em dispensar tudo o que é mínimo, dos leitos ao Estado. Impiedoso com o sofrimento humano, o coronavírus persegue endereços certos que seguirão à tumba. Chegou a hora, humanos do Século XXI, de levantarmos o véu herdado e persistente de cordialidade com que insistimos em encobrir nossa pior face: a desigualdade social.

 

 

Pedro Sampaio Minassa

Pedro Sampaio Minassa é brasileiro, graduando (já finalista) em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo e cronista nos tempos livres. É colaborador de diversos portais e jornais, tais como o P3 (Público, Portugal), Portal DUO, Portal do Envehecimento, Crônicas da Editora KBR.

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