Filha de Mãe África
pedrosampaiominassa@gmail.com
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (Brasil)

Mais uma vez uma voz d’África me chamou. Desta vez, uma voz de criança. Estava ali, num canto, em pé, com seu cabelo crespo assumido e o rosto delicado, como que esculpido. Cantava uma música de ninar com uma voz de veludo, demasiadamente afinada e soprosa. A filha de Mãe África estava concentrada no que fazia, não perdia uma nota sequer da música que cantava.
A cena de impacto desse dia, porém, foi o contraste entre a menina e o que ela fazia com as suas mãos pequenas. Olhando sempre para baixo, ela segurava uma boneca-sereia de pele branca, olhos azuis e cabelos claros, longos e lisos, enquanto na outra mão manuseava uma pequena escova nos cabelos sintéticos da boneca. Cada passada de escova no cabelo da boneca seguia-se de um verso da canção.
Quantas mensagens surgiram em minha mente naquele instante... Aquela cena transportou-me a uma época que aparentemente teria acabado no Século XIX nas ex-colônias europeias, apenas aparência: uma menina negra em pé, com uma escova na mão a pentear os cabelos lisos e claros da “sinhá” sentada na cama. Quanto tempo faz que deveria dizer que isso de fato acabou?
Vivemos hoje numa sociedade de hipocrisias com relação à escravidão. Devo dizer que elas andam mascaradas pela ideia de normalidade. Será que evoluímos? Ou continuamos a fazer as mesmas atrocidades disfarçadas de bons costumes? Estamos na era do falso moralismo racial.
Lá estava a menina a segurar um verdadeiro atestado de atraso social. O que estaria ela a pensar, enquanto penteava o cabelo da boneca? O que passava pela sua cabeça ao alisar o cabelo já liso da boneca? A filha de Mãe África amanhã será Mãe de Filha África, e como será para ela educar seus filhos na originalidade da autoimagem e da identidade? Como romper um padrão que desde criança lhe foi imposto? Os estigmas e estereótipos hodiernos, não se engane, estão também nos objetos que circulam no mercado. Não é preciso entoar palavras racistas, para se afirmar e confirmar a lógica racista. Muitos gestos falam por si e o mercado inoculou o modelo a ser seguido.
Queria eu poder dizer àquela menina que sua beleza superava a daquela boneca, que sua riqueza ultrapassava a daquela sereia. Dizer à filha d’África que seu rosto era muito mais delicado e desenhado, esculpido e amoldado, dizer que sua voz era doce, seu cabelo era seu, era lindo do jeito que Deus deu. Para que aquela menina não crescesse negando a si mesma, mas sim aceitando-se, não denegrindo sua imagem, mas “negrindo” a mesma. Não se vendo branca, de cabelos lisos e olhos claros, mas se vendo negra, de cabelos crespos, olhos caros e olhos raros. Cresça menina, mas não se deixe levar por um mundo que sempre tentará lhe pôr pequena. “Se o branco soubesse o valor que o preto tem, tomava banho de piche e ficava preto também!”
Pedro Sampaio Minassa é brasileiro, graduando (já finalista) em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo e cronista nos tempos livres. É colaborador de diversos portais e jornais, tais como o P3 (Público, Portugal), Portal DUO, Portal do Envehecimento, Crônicas da Editora KBR.