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O discurso da seleção natural em tempos de COVID-19

2020
nascimentolag@gmail.com
*Acadêmico do curso de Psicologia da UNIFACS – Universidade Salvador, Feira de Santana/BA (Brasil). **Doutoranda e mestre em Estudos Linguísticos na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), graduada em Letras Vernáculas (UEFS). Vinculada aos grupos de pesquisa Labedisco (Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo - UEFS/Cnpq).

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O discurso da seleção natural em tempos de COVID-19

Os conceitos provenientes da biologia há muito tempo são utilizados em uma finalidade que transcende o seu usual. Muitos desdobram-se em dispositivos político-epistemológicos maiores que sua neutralidade científica, normalmente mesclados e utilizados por grupos religiosos e suas ideologias ou populações mais favorecidas. Às vezes até mascarados, apresentando-se como discurso e não necessariamente como o conceito propriamente dito. Mas claro, não são utilizados apenas por estes. De qualquer forma, o caso mais claro pauta-se na ideia de instinto. Não entrarei em uma discussão prolongada sobre o conceito deste ou se de fato eles existem, até porque creio neles. Contudo, tenho minhas severas precauções sobre. Entretanto, por motivos didáticos, pensemos que um instinto é uma cadeia ou um padrão de resposta, em grande parte com uma finalidade específica, proveniente em todos os indivíduos de uma dada espécie dado ao um determinado estímulo. Mas afinal, como este se apresenta como um dispositivo?

Uso Fabio Belo para explicitar. Ele diz: “O termo instinto é utilizado usualmente como uma justificativa moral para legitimar certas práticas corretivas sobre o comportamento e a moral. Seguindo esse raciocínio, ao não cumprirmos aquilo que é da ordem do natural, da ordem dos comportamentos pré-definidos, nos direciona para o campo da monstruosidade e aberração. Isso torna-se claro em alguns exemplos primordiais como no caso da maternagem e virilidade do homem. As mulheres que se recusarem a seguir esta ordem natural do instinto materno, como por exemplo na recusa a ter bebês ou no abandono destes, regularmente são alojadas no âmbito da monstruosidade ou da loucura. É como se, de fato, para uma interpretação política, as mulheres não estivessem cumprindo algo que é da essência delas, próprio delas, da natureza delas. Como outros exemplos, temos uma espécie de instinto viril que. Socialmente. supõe algum tipo de superioridade do homem sobre a mulher ou um desejo sexual mais elevado, o que justificaria maior liberdade ao homem do que as mulheres”. Eu não duvidaria que até mesmo quem discorda disto se pegue, em algum momento, possuindo tais pensamentos sobre o outro ou até sobre si mesmo, como justificativa de suas próprias práticas ou algum acontecimento. Penso que tais discursos estejam tão intrínsecos que mal percebemos.

Dentre a imensa variedade dos conceitos, seleciono mais um para discutir a respeito. A priori, pontuo que a escolha do conceito de instinto serviu apenas com um guia de raciocínio para nos colocar na verdadeira reflexão que decidi propor. Sendo assim, atenho-me agora ao conceito de seleção natural, já muito conhecido por todos nós. Mas, por que este? Bom, tenho visto frequentemente nas redes sociais comentários acerca da seleção associado aos tempos de pandemia, e até mesmo, medidas propostas por governos pautadas nisto. Como no caso do instinto, também não irei me ater sobre se de fato o processo ocorre ou não ou sobre o uso incorreto da palavra forte como substituto da palavra apto, e sim, sobre o que esse conceito, utilizado de forma irresponsável e deturpada, configura enquanto dispositivo político-epistemológico.

Percebo que o uso do conceito de seleção natural tem sido contextualizado como uma forma de legitimar práticas de conduta que favoreçam um determinado grupo de pessoas e até mesmo a morte nestes tempos de pandemia. Parece absurdo e as vezes até inverossímil, mas é real. Não se precisa muito para encontrar a respeito disto, basta realizar uma pesquisa rápida e verá postagens ou comentários como: “Estamos vivendo uma seleção natural, só os fortes sobrevivem” ou “Encerra a quarentena/distanciamento social e libera a cloroquina, a seleção natural faz o resto”. Mas afinal, que resto é esse se não, de fato, o escarnio e deterioração de algum grupo populacional menos favorecido. Não, de forma alguma este favorecimento é, de fato, natural. Ao ver isso, eu leio da seguinte forma: “Encerra a quarentena/distanciamento social e libera a cloroquina para aqueles que poderão ter acesso (acesso aqui não determinado por nenhum tipo de “natural”) e foda-se o resto”. Detalhe, nem sequer sabemos se, de fato, a cloroquina possui essa eficácia tão comentada. Como leitor de Darwin, saliento que, se ele estivesse vivendo o nosso tempo, inclusive de acordo com sua autobiografia, duvido muito que este fosse a favor desta visão político-epistemológica e, com certeza, como um bom velhinho, ele também estaria em casa em quarentena, principalmente porque ele seria grupo de risco.

Mas, retomando, se formos mais adiante, supormos essa realidade e nos perguntarmos: Quem serão os mais aptos? Para esta pergunta, a resposta será óbvia. Sem nenhuma neutralidade cientifica, nem muito menos algo de fato da ordem do biológico, os mais aptos serão a alta escala da sociedade. E assim temos que, ao falarmos em seleção natural, visando a exposição de todos ao contágio do vírus ou a quebra de qualquer recomendação proposta, estamos falando da morte de milhares. Muito mais do que os que já estão mortos. E se, em algum momento, pensarmos que estas mortes foram por seleção, será apenas uma forma censurada de dizer que é a favor disto sem produzir algum tipo de “peso na consciência”. Se recuarmos um pouquinho no tempo, veremos que, outras vezes, este mesmo dispositivo político epistemológico foi utilizado, de forma irresponsável, como legitimador de práticas de rejeição social. Afinal, os discursos se repetem...