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Filha de Mãe África

2019
pedrosampaiominassa@gmail.com
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (Brasil)

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Filha de Mãe África

Mais uma vez uma voz d’África me chamou. Desta vez, uma voz de criança. Estava ali, num canto, em pé, com seu cabelo crespo assumido e o rosto delicado, como que esculpido. Cantava uma música de ninar com uma voz de veludo, demasiadamente afinada e soprosa. A filha de Mãe África estava concentrada no que fazia, não perdia uma nota sequer da música que cantava.

A cena de impacto desse dia, porém, foi o contraste entre a menina e o que ela fazia com as suas mãos pequenas. Olhando sempre para baixo, ela segurava uma boneca-sereia de pele branca, olhos azuis e cabelos claros, longos e lisos, enquanto na outra mão manuseava uma pequena escova nos cabelos sintéticos da boneca. Cada passada de escova no cabelo da boneca seguia-se de um verso da canção.

Quantas mensagens surgiram em minha mente naquele instante... Aquela cena transportou-me a uma época que aparentemente teria acabado no Século XIX nas ex-colônias europeias, apenas aparência: uma menina negra em pé, com uma escova na mão a pentear os cabelos lisos e claros da “sinhá” sentada na cama. Quanto tempo faz que deveria dizer que isso de fato acabou?

Vivemos hoje numa sociedade de hipocrisias com relação à escravidão. Devo dizer que elas andam mascaradas pela ideia de normalidade. Será que evoluímos? Ou continuamos a fazer as mesmas atrocidades disfarçadas de bons costumes? Estamos na era do falso moralismo racial.

Lá estava a menina a segurar um verdadeiro atestado de atraso social. O que estaria ela a pensar, enquanto penteava o cabelo da boneca? O que passava pela sua cabeça ao alisar o cabelo já liso da boneca? A filha de Mãe África amanhã será Mãe de Filha África, e como será para ela educar seus filhos na originalidade da autoimagem e da identidade? Como romper um padrão que desde criança lhe foi imposto? Os estigmas e estereótipos hodiernos, não se engane, estão também nos objetos que circulam no mercado. Não é preciso entoar palavras racistas, para se afirmar e confirmar a lógica racista. Muitos gestos falam por si e o mercado inoculou o modelo a ser seguido.

Queria eu poder dizer àquela menina que sua beleza superava a daquela boneca, que sua riqueza ultrapassava a daquela sereia. Dizer à filha d’África que seu rosto era muito mais delicado e desenhado, esculpido e amoldado, dizer que sua voz era doce, seu cabelo era seu, era lindo do jeito que Deus deu. Para que aquela menina não crescesse negando a si mesma, mas sim aceitando-se, não denegrindo sua imagem, mas “negrindo” a mesma. Não se vendo branca, de cabelos lisos e olhos claros, mas se vendo negra, de cabelos crespos, olhos caros e olhos raros. Cresça menina, mas não se deixe levar por um mundo que sempre tentará lhe pôr pequena. “Se o branco soubesse o valor que o preto tem, tomava banho de piche e ficava preto também!”

 

Pedro Sampaio Minassa

Pedro Sampaio Minassa é brasileiro, graduando (já finalista) em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo e cronista nos tempos livres. É colaborador de diversos portais e jornais, tais como o P3 (Público, Portugal), Portal DUO, Portal do Envehecimento, Crônicas da Editora KBR.

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